sábado, 20 de setembro de 2008

MECANISMOS QUE DEFLAGRAM A ENXAQUECA

Biólogos finalmente começam a desvendar os mistérios da enxaqueca, do prenúncio à dor
por David W. Dodick e J. Jay Gargus
Para mais de 300 milhões de pessoas que sofrem de enxaqueca, a dor lancinante característica dessa cefaléia debilitante dispensa descrição. Para os que não sofrem com ela a comparação análoga mais próxima talvez seja o mal-estar severo provocado pela altitude: náusea, fotossensibilidade extrema, e uma cefaléia insuportável. “O fato de não se morrer de enxaqueca, para aquele que experimenta o auge de sua crise, soa como um bênção ambígua”, escreveu Joan Didion, em 1979, no conto In bed (Na cama), de sua coletânea The white album.Registros históricos indicam que essa doença está entre nós há pelo menos 7 mil anos e continua uma das mais incompreendidas, menos reconhecidas e mais inadequadamente tratadas condições médicas. De fato, muitos não buscam tratamento para pôr fim à sua agonia, certos de que os médicos não podem fazer muita coisa ou que se mostrarão céticos e hostis. Didion escreveu In bed há quase 3 décadas, mas alguns médicos continuam tão insensíveis hoje quanto à época, ou seja: “Se não tenho um tumor cerebral, nem cansaço ocular, nem hipertensão, então, está tudo bem comigo: eu simplesmente sofro de enxaqueca e cefaléia; e enxaqueca e cefaléia, como todos sabem, são imaginárias”.A enxaqueca, finalmente, começa a receber a atenção que merece. E parte dessa atenção é resultado de estudos epidemiológicos que revelaram o quanto essas cefaléias são incapacitantes: um relatório da Organização Mundial da Saúde descreveu a enxaqueca como uma das quatro doenças crônicas mais comprometedoras. E uma outra preocupação se deve ao reconhecimento de que essas cefaléias e suas conseqüências custam à economia americana, por exemplo, US$ 17 bilhões por ano, para cobrir faltas no trabalho e despesas médicas.Grande parte do crescente interesse é resultado das novas descobertas genéticas, do imageamento do cérebro e da biologia molecular. Embora de natureza bem distinta, essas descobertas parecem convergir e reforçam umas as outras, trazendo esperanças aos pesquisadores de poder determinar a fundo as causas da enxaqueca e desenvolver terapias avançadas para preveni-la ou conter o seu ataque.
A Ascensão de VaporesToda explicação plausível para a enxaqueca deve considerar uma ampla e variada gama de sintomas. A freqüência, duração, experiência e catalisadores dos episódios diferem enormemente. As vítimas têm, em média, um ou dois dias inteiros de crise por mês. Contudo, 10% têm crises semanais; para 20%, elas duram de 2 a 3 dias; e cerca de 14% são acometidos por mais de 15 dias ao mês.Em geral, a dor ataca apenas um lado do cérebro, mas nem sempre. As enxaquecas em pessoas predispostas podem ser desencadeadas por uma variedade de motivos que parecem não passar despercebidos – álcool, desidratação, esforço físico, menstruação, estresse emocional, mudanças climáticas, alergias, falta de sono, fome, altitude e iluminação fluorescente foram todos citados como motivadores. As enxaquecas acometem ambos os sexos e todas as faixas etárias, embora dois terços dos casos se concentrem entre mulheres na faixa dos 15 aos 55 anos.Ao longo do tempo, os médicos têm proposto muitas razões para o aparecimento dessas cefaléias. Galeno, na Grécia Antiga atribuiu o mal à ascensão de vapores ou humores – líquidos – do fígado para a cabeça. A descrição de Galeno da hemicrania – cefaléia unilateral que abrange quase metade da cabeça – é na verdade a que nos referimos como sendo a enxaqueca hoje: o termo grego “hemikrania” transformou-se em “migran” e, posteriormente,“migrânea” ou “enxaqueca”.No século 17, o fluxo sangüíneo substituiu os humores como culpado e essa hipótese vascular continuou em vigor, com raras exceções, até a década de 80. A idéia aceita, baseada nas observações e inferências de diversos médicos, incluindo Harold G. Wolff do New York-Presbyterian Hospital, era de que a dor da enxaqueca vinha da dilatação e distensão das artérias cerebrais, responsáveis pela ativação dos neurônios sinalizadores da dor. Wolff acreditava que a cefaléia era precedida por uma queda no fluxo sangüíneo provocada pela constrição desses mesmos vasos.
Os exames de imagem da atividade cerebral mudaram o entendimento das alterações vasculares. Descobriu-se que em muitos a dor é precedida não pela diminuição do fluxo sangüíneo, mas pelo seu aumento – cerca de 300% a mais. Durante a crise de cefaléia, porém, o fluxo sangüíneo não é aumentado; na verdade, a circulação é aparentemente normal ou até reduzida. E não só a compreensão específica do fluxo sangüíneo mudou como também o panorama da causa da enxaqueca. Agora, acredita-se que a enxaqueca resulte de um distúrbio do sistema nervoso – e provavelmente de sua região mais primitiva, o tronco cerebral.Essa nova abordagem surgiu principalmente da análise de dois aspectos da enxaqueca: o prenúncio, que antecede a dor em 30% dos pacientes e a própria cefaléia. O termo “prenúncio” vem sendo usado por quase 2 mil anos para descrever alucinações sensoriais que antecedem alguns surtos epiléticos; há coisa de 100 anos ele vem sendo usado para descrever o início de muitas enxaquecas. A epilepsia pode ocorrer em pessoas com enxaqueca, e vice-versa; os motivos estão sendo pesquisados. A forma mais comum de prenúncio é a ilusão visual de estrelas brilhantes, centelhas, espocares luminosos, raios ou padrões geométricos, sempre seguidos por pontos escuros no mesmo formato que as imagens brilhantes originais. Para alguns, o prenúncio inclui sensação de formigamento ou fraqueza, ou ambas, em um lado do corpo; ou ainda o comprometimento da fala. Em geral, o prenúncio precede a cefaléia, mas ele pode iniciar depois de a dor começar, e persistir. O prenúncio parece derivar de uma depressão cortical – um tipo de “brainstorm” antecipado como a causa da enxaqueca, nos registros de século 19, do médico Edward Lieving. E embora o biólogo brasileiro Aristides Leão (1914-1993) tenha relatado o fenômeno pela primeira vez em animais, em 1944, só há pouco ele foi relacionado em testes, à enxaqueca.Em termos mais técnicos, a depressão alastrante cortical é uma onda de intensa atividade nervosa celular que se espalha por um amplo segmento do córtex – a camada externa do cérebro –, em especial na região que controla a visão. Essa fase de hiperexcitamento é seguida por uma onda de inibição neuronal disseminada e relativamente prolongada. Durante a fase inibidora, os neurônios ficam em estado de “suspensão animada”, em que não podem ser excitados. A atividade neuronal é controlada por um fluxo de íons de sódio, potássio e cálcio cuidadosamente sincronizados, ao longo da membrana das células nervosas através de canais e bombas. As bombas mantêm as células em repouso com altos níveis de potássio e pobres em sódio e cálcio. Um neurônio “dispara”, liberando neurotransmissores, quando o fluxo retornável de sódio e cálcio através dos canais abertos despolariza a membrana – isto é, quando o interior da célula se torna positivo com relação ao exterior.
Geralmente, as células se hiperpolarizam rapidamente: elas se tornam altamente negativas no interior em relação ao exterior permitindo a liberação do potássio. A hiperpolarização fecha os canais de sódio e de cálcio e retorna os neurônios a seu estado de repouso, logo após disparar. Mas os neurônios podem permanecer excessivamente hiperpolarizados, ou inibidos, por um longo tempo após intensa estimulação.As fases de hiperexcitabilidade seguidas pela inibição que caracterizam a depressão cortical podem justificar as alterações no fluxo sangüíneo registradas antes que a dor da enxaqueca tivesse se iniciado. Quando os neurônios estão ativos e disparando, despendem muita energia e, portanto, sangue – exatamente o que se encontra em escaneamentos cerebrais de pacientes experimentando o prenúncio. Mas, a seguir, durante a inibição, os neurônios silenciosos precisam de sangue. Várias outras observações reforçam a idéia de que a depressão cortical embasa o prenúncio. Quando registrado por técnicas de imagem avançadas, o momento da despolarização coincide perfeitamente com as descrições do prenúncio.As ondas elétricas viajam através do córtex a uma velocidade de dois a três milímetros por minuto, e as ilusões visuais que acompanham o prenúncio são exatamente as que surgiram da ativação que se espalhou pelos campos corticais àquela velocidade. O conjunto de sensações que o prenúncio pode englobar – efeitos visuais, sensoriais e motores – sugere que as áreas correspondentes do córtex são afetadas na seqüência, conforme a “tempestade” as cruza. Os pontos escuros que os pacientes experimentam depois das alucinações brilhantes são consistentes com a inibição neuronal nas regiões do córtex visual que acabara de experimentar a hiperexcitabilidade.Pesquisas genéticas começam a explicar por que a depressão alastrante cortical ocorre em alguns pacientes. Quase toda enxaqueca é considerada um distúrbio poligenético complexo comum – na mesma categoria do diabetes, do câncer, do autismo, da hipertensão e outros. E essas doenças são hereditárias. Gêmeos idênticos são mais inclinados a compartilhar da enxaqueca que gêmeos fraternos, sugerindo forte componente genético. Mas a doença obviamente não é provocada por uma única mutação genética simples; e sim, um indivíduo parece se tornar suscetível ao herdar mutações em diversos genes, cada uma provavelmente contribuindo um pouco. Também há implicação de componentes não genéticos, pois mesmo gêmeos idênticos são “discordantes” quanto ao distúrbio: às vezes, um dos gêmeos sofre de enxaqueca, e o outro não.
Pesquisadores não sabem precisar que genes aumentam a suscetibilidade à enxaqueca e seu prenúncio entre a população em geral, mas estudos com pessoas acometidas com uma forma rara da doença, chamada enxaqueca hemiplégica familiar, sugerem que falhas em bombas e canais iônicos neuronais provocam o prenúncio e a dor nesses pacientes. Três genes carregam mutações que são individualmente potentes o bastante para provocar a doença – e todos os três codificam bombas e canais iônicos neuronais. Além disso, os genes são alterados por mutações que aumentam a excitabilidade das células nervosas, supostamente alterando as propriedades de bombas e canais iônicos codificados. Essas descobertas reforçam a idéia de que a enxaqueca poderia ser uma canalopatia, um novo tipo de doença reconhecido recentemente, decorrente de distúrbios nos sistemas de transporte de íons – uma causa conhecida de doenças como a arritmia cardíaca e convulsões.Não está claro se o mau funcionamento das bombas e canais iônicos são os únicos meios pelos quais se pode produzir o prenúncio. Assim como não se sabe se as formas comuns de enxaqueca envolvem perturbações nos três genes implicados na enxaqueca hemiplégica familiar. Ainda assim, a abordagem genética é muito estimulante pois indica uma relação entre a depressão alastrante cortical e problemas com o canal iônico, que pode ser fundamental para o desenvolvimento de novos medicamentos.

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